NO TEMPO EM QUE OS BICHOS FALAVAM
Nádia(Sidewí)Chaia
Era eu ainda menina quando, pela tardinha, banho tomado, cabelos penteados por minha mãe, sentava-me ao lado do rádio (naquele tempo aparelho de TV só em casas muito abastadas) para ouvir as deliciosas “Histórias do Tio Janjão” que, invariavelmente, começavam assim: “No tempo em que os bichos falavam...” Imediatamente a cabecinha voava a tempos muito remotos e conseguia “ver” a história contada. É exatamente essa viagem que quero fazer para contar uma história...
No tempo em que os bichos falavam, Kulaia¹ e Simbi², duas meninas como tantas outras na aldeia, sentavam-se com as demais crianças ,em círculo, tendo a fogueira no meio, para aprender com as histórias contadas pelos makota³.
Numa noite em que dieji(4) competia em brilho com o fogo crepitante, vovô Nuani(5) resolveu contar a história de Kabila, o pastor.
Quando o dia findava e a escuridão da noite vinha chegando, Kabila reunia o gado no entorno da aldeia, no espaço existente entre o povoado e a floresta, e ia descansar em sua kubata(6), para retornar ao pastoreio no dia seguinte, ao nascer do sol. Entretanto, quando o dia amanhecia Kabila, invariavelmente, encontrava o gado disperso pelo mato, o que fazia com que o pastor tivesse um trabalhão para reunir o rebanho e leva-lo a pastar. Já muito intrigado e disposto a descobrir o que estava acontecendo, resolveu que passaria a noite junto ao gado. Assim, preparou-se para a vigília. Lá pelas tantas da noite observou um movimento estranho no mato e o nervosismo tomar conta do rebanho. Escondeu-se e ficou prestando atenção ao movimento e ao burburinho que vinha do mato; foi aí que percebeu a chegada dos kazumbi(7) que vinham assustar os animais. Descoberto o mistério, Kabila ficou sem saber o que fazer; como livrar os bichos dos kazumbi? Estava assim pensando quando reparou que, quando algum animal levantava a cauda para defecar, os kazumbi que estivessem próximos fugiam apavorados para a floresta. Esperou o dia clarear e sacrificou um boi e um cavalo, dos quais cortou o rabo. A carne foi destinada ao consumo da aldeia numa grande refeição comunitária.
Com o rabo do boi preparou uma espécie de abano que, quando balançado para cima e para baixo, imitava o movimento do animal ao defecar. Com o rabo do cavalo preparou outro abano com o qual presenteou sua companheira, Kaiango Muenhu.
Quando a noite chegou Kabila e Kaiango Muenhu já estavam escondidos, cada um de um lado, com os abanos nas mãos, esperando que os kazumbi viessem espalhar o gado. Esperaram até que eles se aproximassem bem do rebanho. Assim que chegaram ao ponto desejado Kabila e Kaiango correram ao encontro deles, cada qual com o seu mukila(8) balançando como fazia o gado. Os kazumbi fugiram em desabalada corrida para a floresta e não voltaram mais.
Em razão de terem livrado a aldeia do ataque dos kazumbi, Kabila e Kaiango Muenhu foram reverenciados por todos e passaram a usar, Kabila o mukila ngombe(9) e Kaiango Muenhu o mukila kabalu(10) como seus símbolos e armas. Quando morreram passaram a condição de ancestrais sagrados.
Assim vovô Nuani acabou de contar a história e foram todos dormir.
Quando os negros africanos foram trazidos para o Brasil vieram com eles suas crenças, seus mitos, suas lendas, seus cânticos, suas tradições, enfim, sua cultura que, recriada ou não, sobreviveu nesta terra. Até os dias de hoje, nas casas de culto afro-brasileiras de raiz bantu (Angola/Congo), quando nas festas cantam as cantigas que louvam os feitos dos ancestrais, com danças que revivem os fatos cantados, se há entre os presentes alguém que seja seu “filho”, tanto Kabila quanto Kaiango se apresentam para dançar, cada um com seu mukila, demonstrando que assim espantaram os kazumbi e que ainda o fazem se for necessário. É mais uma demonstração de que a África ancestral revive no Brasil.
Glossário: (língua Kimbundu)
1- Vida
2- Fonte
3- Anciões
4- Luar
5- Defensor
6- Casa
7- Espíritos
8- Cauda, rabo
9- Rabo de boi
10- Rabo de cavalo
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Parabéns! Essa palavra é o tudo e o nada que se confundem no infinito das ã
Almas!
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