Maricá/RJ,

África de todas as cores, sons e... sabores


CAÇADOR, CAMINHO,  CONSCIÊNCIA
por  Nádia (Sidewí) Chaia




O que é a consciência senão o caminho que leva a reflexão?

Observando um escultura de estilo maconde, adquirida na “Feira da ladra” – Lisboa – em 2003, reparei que a figura, uma representação de um caçador, traz junto ao corpo, apoiada na mão esquerda, a pata do animal caçado. Tendo uma lança na mão direita e o corpo esguio coberto por uma pele, a estatueta fez-me pensar na agilidade e leveza de movimentos necessárias para que o caçador nativo atingisse seu intento. Mergulhada nesse pensamento, fui recuando no tempo e vieram-me a memória rituais que eram executados pelos antigos caçadores, desde muito antes do branco colonizador se instalar nas costas africanas. Os homens saíam para a caçada em grupos, sendo o mais experiente  o responsável por todos os demais. Era o orientador. Terminada a empreitada, a caça era transportada para a aldeia e lá eram divididas, de modo que todos recebessem seu naco de carne.
Além da carne a que fazia jus, o responsável recebia, também, a pata do animal, que ia depositar na beira do caminho, para que nunca se perdesse ou deixasse de encontrar, em segurança, o rastro da caça, garantindo, dessa forma, um bem estar ao seu povo. A homenagem era prestada aos antepassados caçadores, aqueles que bem antes haviam trilhado os caminhos que conduziam a uma boa caçada.

Nas religiões afro-brasileiras, sempre que um animal é sacrificado, as carnes são cozidas de maneira apropriada e são consumidas numa refeição comunitária, da qual participam todos os que estiverem na casa, exceto algumas partes e dentre elas as patas, que são oferecidas ao ancestral homenageado.As homenagens são realizadas para pedir alguma ajuda, ou agradecer o auxilio recebido.
Nas mais diversas manifestações culturais de raízes africanas, podemos observar que tudo começa com a procura e determinação do caminho. Veremos a seguir alguns exemplos: capoeira  - quando os capoeiristas se abaixam em frente aos atabaques, estão prestando reverência aos ancestrais que determinarão o caminho, de paz e confraternização se for um jogo, uma brincadeira como também é popularmente conhecida a roda de capoeira, ou de vida e de morte se for uma luta, como ocorreram muitas vezes no Brasil colonial e mesmo mais tarde, na velha Bahia, quando ainda se fazia o jogo da navalha e brabos desafetos resolviam ali suas pendengas;
jongo – hoje em dia quase não se vê mais os velhos mestres jongueiros, que preparavam seus jingoma (plural de ngoma) a partir de um pedaço selecionado do tronco de uma árvore, derrubada na lua certa e na hora propícia e escavavam e esticavam o couro de forma a obter uma sonoridade única, os tambores hoje, via de regra, são comprados prontos, são industrializados. Os rituais realizados antes que a roda se forme são dirigidos aos antepassados, para pedir-lhes licença e caminhos de paz e confraternização durante a roda e que, ao final, cada um possa seguir em paz para as suas casas;
umbanda – a umbanda começa suas sessões, como habitualmente são denominadas suas reuniões de culto, com a queima, em brasas de carvão, de incenso e uma mistura de determinadas ervas (defumador), envolvendo todo o recinto numa fumaça perfumada, acompanhada de cânticos propiciatórios que são uma espécie de limpeza dos caminhos, uma forma de pedir bons caminhos para os  trabalhos e para os que lá estão;
candomblé – sempre inicia seus rituais com uma oferenda ao guardião, ao andarilho dos caminhos, para que este, satisfeito com a homenagem, permita que os caminhos sejam bons, prósperos, de paz e harmonia para a cerimônia e para os participantes.

Quando os colonizadores chegaram as costas da África, acharam que os povos que lá viviam eram por demais primitivos e bárbaros e que, portanto, tinham o direito e, mais do isso, a obrigação de submete-los ao seu domínio, pois eles sim eram civilizados. Acharam por demais grotescas e sangrentas as guerras que um povo travava com outro, lutando com as mesmas armas: lanças, facões, etc, mas acharam normal e justo subjuga-los a poder da pólvora, das armas de fogo contra as quais os nativos não tinham defesa. Queriam converte-los a qualquer custo, para salvar-lhes as almas. Achavam normal e justo incentivar as guerras, para que os vencidos capturados fossem a eles vendidos, instituindo e incentivando um comércio antes desconhecido por eles. É certo que entre os povos africanos existia a escravidão, assim como existiu no mundo todo, mas lá era um outro sistema , não havia castigos físicos e sim trabalho. Os escravos eram “integrados” ao povo vencendor. Encher os porões dos tumbeiros com “peças” para serem comercializadas em outras terras era uma atividade normal, lucrativa e civilizada. Quando um chefe bantu morria e o seu coração era comido pelo seu sucessor, na crença de que assim obteria para si a força, a coragem, enfim as qualidades de seu antecessor, o colonizador considerava a tradição como um ato de babárie sem par.
Como creio que a consciência só pode ser alcançada pelo caminho da reflexão, eu pergunto a mim mesma: - Quem na verdade era o bárbaro, o negro que escolhido rei comia o coração de seu antecessor no trono, acreditando estar recebendo suas qualidades ou o colonizador “civilizado” que comprava e vendia gente e que mandava enforcar, esquartejar, salgar e espalhar pelos caminhos seus opositores, para que servissem de exemplo, como tantas e tantas vezes aconteceu em terras do Brasil colônia?
Acredito que muita gente não concorde comigo, afinal sei que o assunto é polêmico.
Enquanto não se aprender que antes de qualquer coisa, qualquer reivindicação, é necessário pesquisar, saber quem foram os antepassados, seus costumes, os caminhos trilhados, o porque de tantas e belas heranças negras que temos. Sentir orgulho das raízes, conhecer a própria história, pode evitar que um movimento em que alguns poucos, no início, lutaram pelo bem estar e pelos interesses de muitos se transforme em um movimento em que muitos, sem o perceber, acabem abrindo espaço para que poucos se aproveitem para atender aos seus interesses pessoais. 
Uazedíua soba Zumbi. ( Abençoado rei Zumbi).                                               

* Nádia (Sidewí) Chaia - Pesquisadora de Cultura Afro; Africanidade e temáticas Afro-Brasileiras.

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Graça 19 de dezembro de 2011 às 21:32  

Amei o texto. A pergunta que não quer calar: Alguém tem dúvidas de qual seria na realidade o povo bárbaro? Acho que a história por si só responde a essa pergunta.
Uazedíua soba Zumbi. ( Abençoado rei Zumbi).

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