Maricá/RJ,

Querida Sinhá Isabel


Por Leopoldo Duarte, publicado originalmente em maio 11, 2015 16:28 (Revista Fórum)













Daqui a dois dias seremos lembrados que, numa canetada, uma princesa branca libertou todos os negros escravizados do Brasil. E tenho absoluta certeza de que algumas pessoas, em pleno 2015, celebrarão esse ato de suposta extrema generosidade e compaixão com memes e frases de efeito na minha timeline. Se você é uma dessas, favor persista na leitura.

Segundo a história oficial, somos levados a crer que depois de 3 séculos, 358 anos pra ser mais exato e um pouco de pressão econômica da Inglaterra, Isabel foi acometida de um lapso de teimosia e humanidade que a levou a assinar a abolição dos escravos. Fofa ela, não?! Mereceu até uma pena dourada pra tornar o momento mais mágico e reluzente. A partir de então, cada homem negro e mulher negra se tornaram livres para desfrutarem da tão sonhada liberdade. E todos viveram feliz pra sempre numa democracia racial. Só que não mesmo!


Negros e negras jamais esperaram paciente e pacificamente por suas alforrias. Diversas foram as maneiras usadas para escapar dos grilhões brancos: cartas, culto a ancestralidade, estudo, fuga, suicídio,…. Enfim, não só os quilombos ofereceram resistência contra as injustiças perpetuadas contra negros e negras sob o aval da ciência e do catolicismo da época. A simples sobrevivência naquelas condições sub-humanas deveria ser lembrada como um ato de resiliência ímpar.

Contudo, não podemos deixar de ter em mente que a maior pressão para a abolição veio do movimento abolicionista nacional e internacional, além dos interesses econômicos da nova etapa do capitalismo que surgia. Tanto foi assim que Sinhá Isabel não se preocupou em assegurar o bem estar dos milhões de escravos jogados na rua. Todos os anos de suor e sangue nas fazendas não garantiram aos afrodescendentes nem um teto, pedaço de terra ou qualquer tipo de direito que os elevasse da precariedade a qual nossos antepassados foram sujeitados.

Aboliram as senzalas, mas não as estruturas legais, políticas e sociais construídos em séculos de colonização racista. Pelo contrário, coincidentemente, pouco antes da Lei Áurea foi feita uma reforma agrária que limitou a posse de terra a quem pudesse pagar. Antes era, basicamente, só ocupar e cultivar. Sem terra nem dinheiro, uma outra saída seria a educação, mas ainda hoje a elite contesta qualquer tipo de reparação. Imagina no dia seguinte, então…

O problema da cultura ocidental é que acreditamos superar todos os preconceitos do passado a cada passo que damos adiante. Nós ainda insistimos em ver japoneses, apesar de toda superioridade tecnológica, como samurais ou gueishas, e ainda associamos índios a cocares e danças cerimoniais entre outros possíveis exemplos. Contudo nos forçamos a acreditar que séculos de exploração e desumanização de índios e negros foram ultrapassados com uma simples assinatura. Insistimos num final feliz e redentor, e nesse caso, com direito a “princesa” que faz jornada dupla como fada madrinha.

Quando se vive com as consequências desse tipo de barbárie, ou nos deparamos com a inúmeras estatísticas que as comprovam, não dá pra simplesmente engolir tamanha farsa. É triste perceber que há pessoas que celebram o fim de algo do qual deveríamos sentir vergonha de sequer ter existido. Na verdade chega a ser revoltante a forma como algumas pessoas mencionam Isabel como a ovelha de sacrifício que expurgou todos os malefícios cometidos contra os negros. Fico sinceramente na dúvida se se trata de um ato de má fé ou de completa ignorância histórica quando me deparo com esse tipo de exaltação. Até porque, achar que tudo terminou do dia pra noite é, no mínimo, muita inocência. Basta olhar em volta para perceber que os trabalhadores que mais são consumidos e escravizados pelo sistema continuam sendo majoritariamente negros. A negligência produzida nas senzalas foi perpertuada nas favelas, o segmento do mercado de trabalho mais terceirizado é negro, os empregos mais indesejáveis continuam sendo ocupados por negros, as vidas mais ceifadas e justificadas são negras e por aí vai…

Talvez por essa versão oficial da história – na qual uma figura branca redime todas as sinhás e sinhôs tupiniquins – ser mais apaziguadora que tanta gente branca prefira acreditar nela, no entanto, apesar de muitos historiadores terem embranquecido e singularizado esse importante episódio histórico, basta dar uma aprofundada na pesquisa para aprendermos que nem o racismo nem tampouco a escravidão acabaram 127 anos atrás. Torço para que um dia nossas crianças negras deixem de aprender a agradecer a liberdade exclusivamente a uma princesa branca. Até lá, só nos resta lembrar…

Fonte: http://www.revistaforum.com.br/

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